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30/06/2009

A morrer,

Por Emanuel Neves
Conselheiro INTERnet/BV

Havia um castelhano, um negro e uma bola. Um vinte de maio, uma quarta-feira escorrendo-se em seus últimos atos. O mulato ficava à esquerda. Alto, esguio, melenudo, era a concentração e a certeza vestidas de sangue e noite. O gringo estava à direita. Menor em estatura, retaco, pernas impacientes, levemente arqueadas, como que prontas para receber um bandoneón imaginário. A pelota entre eles, formando uma espécie de triângulo, olho num e noutro, cem mil olhares sobre si. Naquele momento, toda a minha vida se resumia a esse cenário.

Amigos, vocês estavam lá, fosse em corpo ou espírito, dentro ou fora do gramado, e hão de convir comigo que nada mais importava afora essa tríade montada à frente da grande área da Popular, apontando para a goleira cabalística: o negro, o castelhano e a bola. Tentem puxar pela memória - está tudo gravado na alma: remontem aqueles três minutos que se sucederam logo após o excelente Ibson cometer a bobagem suprema de derrubar Glaydson e dar-nos o passe instantâneo para sairmos desse mundo, indo diretamente para um lugar aonde só o Internacional é capaz de nos carregar.

Não pensem que esse ponto em questão é fantástico e maravilhoso, porque não é! A verdade, amigos, é que, em nome do Colorado, da nossa devoção, nós fomos desembocar, uma vez mais, num tipo de fio-de-navalha, numa linha absolutamente tênue e intangível, porém de potência inexplicável. Sua força é tanta que, naqueles instantes, estávamos todos pinçados como marionetes, legítimos pêndulos humanos, descaindo entre o arrebatamento e a desgraça, flertando com o gozo divino e borrando-nos frente à iminência da dor dilacerante. O pior e o melhor de tudo: experimentando essa variedade sem-fim de sensações em revezamento, com todas as suas gamas pululando átimo a átimo.

E havia lá um castelhano, um negro e uma bola. E também um meio-Estado transformado em joguete das suas próprias emoções, misturando-as e saboreando-as, com todos os pretensos gostos e travos, correndo-os em um século de três minutos. Confesso-lhes que eu só enxergava mesmo o argentino. Era por sua zurda que eu rogava, repetindo seu apelido curto e com apóstrofe em voz e pensamento - sem querer, amarrava duas palavras de mesmo sentido em línguas diferentes: Vamos, D'ale! Esse gringo traz o ímpeto e a fúria na própria alcunha.

O árbitro autorizou, e foi ai que tudo se deu.

O negro orientou o corpo à frente, e agora já não mais havia o castelhano nem a bola. Éramos todos o mulato, por brevíssimos quadros, por movimentos sem tempo. A bola volta à cena, é tocada, sai do chão e apaga todo o resto, transmudando-nos nela própria. Fomos, ali, a pelota voando, correndo o ar com toda a decisão e a certeza, dona do ambiente, de um universo que ali parara e se deixara carregar por ela, todo ele suspenso, travado sobre a quase-morte e o quase-Nirvana.

No esoterismo, no ocultismo e em algumas escolas de pensamento dessas linhas, é muito usado o termo CHAVE. Ele se refere aos segredos iniciáticos, às senhas que desvelam os porquês, as pequenas e grandes verdades. Elas estão ai, mas dificilmente as vemos; olhamos, mas não enxergamos. Ainda assim, vivemos delas, nelas ou sob os seus ditames.

E então, a bola tocou a rede.

E, por um espécie de infinito, já não existia mais dor nem contas a pagar, nem crianças a buscar na escola, nem escândalos nos jornais, nem desamores, nem provas da faculdade, nem ônibus perdidos no ponto, nem o mau hálito matinal, nem pais doentes, nem bilhetes não-contemplados, nem intervalos comerciais, nem despertadores, nem refrigerantes sem gás, nem vidas sem poesia.

Nem vidas sem poesia.

Sejam sinceros com vocês mesmos e reflitam: quantas vezes viveram algo semelhante àquela noite de quarta-feira, quando um negro, um castelhano e uma bola postaram-se em frente à grande área sagrada e lhes roubaram as consciências? E o sentimento de que tudo perdia-se num segundo para, já no seguinte, flanarmos na glória maior de sermos colorados, vocês podem detectar? O arrebatamento daquele gol - irmão do tento de Tinga, de Figueroa, de Adriano -, onde vocês já experimentaram?

Amigos, excetuando-se o nascimento de filhos, uma ou outra grande trepada, quem sabe o envolvimento com a arte ou uma experiência mística, enfim, afora isso, infelizmente, existimos quase como autômatos, sorvidos pela rotina, encaixotados numa pasmaceira bovina. E aqui eis o princípio inabalável, a grande CHAVE do SER colorado: só há vida de verdade no Gigante. Quase tudo que se dá longe da arena montada às margens do Guaíba é um paliativo, uma camuflagem, uma grande tapeação do espírito.

Quem não passou pela angústia de um jogo decisivo dentro do Beira-Rio desconhece a sua própria alma, não sabe do que ela é feita e lhe é tão estranho quanto um transeunte, um passante que se vai no canto da vista, numa rua qualquer. Quem morreu sem ter sido sugado pelo turbilhão de um Gigante urrando nos minutos finais de uma jornada épica, rasgando-se em gritos sem voz, inflando-se em pulmões sem ar, insistindo em jamais desistir, viveu com a intensidade de um marido gordo de pantufas.

É isso que precisamos entender, todos nós, torcedores e atletas. Quando a próxima quarta-feira começar a se despedir, estaremos outra vez despidos do mundo irreal para existirmos de verdade, para entregarmo-nos às sensações que só o Sport Club Internacional é capaz de incitar, para VIVERMOS A MORRER. Vamos outra vez ao legítimo exercício da alma que é alijarmo-nos de todo o supérfluo para sermos apenas Inter, para os noventa minutos de respiro vital da nossa essência. Graças a Deus.

Eu não sei o que vai se passar na quarta-feira. Mas esse é um daqueles poucos dias em que valemo-nos do privilégio de não apenas acreditar, mas sim de termos certeza!

Certeza de que estamos vivos.